Pergunta: Pela minha observação, parece que a atenção fica canalizada pelo mundo objetivo, ou o assim chamado mundo objetivo, nos momentos de elevada atividade quando muito é exigido de você. É como uma máquina que fica congestionada se gastar energia demais. Este consumo excessivo de energia é o que causa a diminuição da atenção?
Jean Klein: Sim, a atenção diminui porque você está envolvido na atividade. Você ainda está na relação sujeito-objeto. A atenção pura é atemporal, e tudo que está no tempo aparece e desaparece neste estado atemporal. Mas você esquece a totalidade para focar sobre a parte, sobre a aparência. Em outras palavras, ao buscar um resultado, você se identifica com o sujeito-objeto. Esta busca exterior bloqueia a Consciência à própria Consciência.
Pergunta: Mas parece que a atividade cotidiana está sempre focada em algum resultado. Você vai ao banco porque deseja retirar dinheiro. Não se vai lá de forma absolutamente desmotivada.
Jean Klein: Isto é verdade. O pensamento pode ser funcional, pode ser calculado. Quando devo limpar meus sapatos, escovar meu cabelo, vestir-me e retirar algum dinheiro para viver, estas são ações intencionais, e obviamente estamos buscando um resultado. Mas nós não estamos pessoalmente envolvidos ou emocionalmente afetados por isto. Nós simplesmente as fazemos.
Essencialmente, não há divisão entre o pensamento prático, o que devo fazer, e o pensamento intuitivo, pois este abrange a totalidade da situação. Mas o verdadeiro pensamento espontâneo surge apenas quando somos livres de desejo, da expectativa e da antecipação. Isto é o que Heidegger se referia como “espera sem espera”. Nada é buscado. Há apenas ser, apenas audição sem a projeção de nada que deva ser ouvido.
Pergunta: O estabelecimento do pensamento espontâneo é algo que acontece gradualmente?
Jean Klein: Não. O pensamento espontâneo surge naturalmente durante nossa vida diária e chegamos a um tipo de compreensão ou resultado. Mas, mais tarde, confrontamos este pensamento e o avaliamos a partir do ponto de vista do sujeito-objeto.
O pensamento espontâneo, a ação espontânea, é estético, ético e funcional. Mas o ego entra e diz: “Vejamos se estou de acordo com este pensamento”, e nós o colocamos em alguma estrutura, algum quadro. Quando você observar, verá quão freqüentemente questiona algo que você entendeu espontaneamente.
Pergunta: Você disse uma vez que onde há esforço há tensão. Parece-me que a tensão é um tipo de defesa. Assim, quando estou tenso, de que estou me defendendo?
Jean Klein: Você defende sua imagem, nada mais. Habitualmente, você objetififica a si mesmo. Vive com uma imagem que criou, a qual estimula a sensação e a emotividade. De qualquer forma não há necessidade de se defender, pois não há ninguém a ser defendido. Quando você está despojado de todas as qualificações, o que há a defender? Você não pode defender sua nudez. Em um estado absolutamente não qualificado, há liberdade, total liberdade.
Enquanto mantemos a perspectiva sujeito-objeto, movemo-nos com uma intenção. Mas, quando você compreende que o que você é nunca pode ser objetificado, chega ao silêncio, à consciência em que emerge o pensamento espontâneo. Pode parecer intencional, mas surge de sua posição atemporal.
Pergunta: Onde há um estado de identidade – olho para uma flor e eu sou a flor – quando nome e forma desaparecem, o que me faz voltar como um ser humano e não como uma flor? Qual é a natureza deste vínculo?
Jean Klein: O ser humano é ainda uma forma e um nome; a flor é ainda uma forma e um nome. Abandonar forma e nome significa abandonar corpo e mente. O que permanece é a Consciência atemporal, a qual é o que você tem em comum com a flor. O ser humano aparece em você exatamente como a flor. Quando você não se pensa como um ser humano, onde está o homem?
Você é um com todos os seres vivos, os quais aparecem nesta unidade. Há distinção, certamente, entre os seres humanos e os outros seres vivos, mas não há separação. Assim seu corpo e mente aparecem na presença atemporal, mas apenas como instrumentos.
A repetição acontece apenas na relação sujeito-objeto. Em outras palavras, as coisas parecem manter a mesma forma, seguindo o mesmo padrão, apenas porque o “eu”, enquanto sujeito-objeto, busca segurança. Uma vez cessada a busca, logo que você esteja fora da posição sujeito-objeto, você verá que toda repetição é ilusória.
Pergunta: Portanto, neste estado não qualificado, todas a ação aparece espontaneamente sem referência ao tempo e ao espaço?
Jean Klein: Sim, aparece espontaneamente. Não há recapitulação do passado, nem antecipação do futuro. Mas o que aparece espontaneamente necessita de tempo e espaço para sua realização. Suponha que você tenha uma intuição de que deve empreender um certo tipo de trabalho. Primeiro você tem a intuição, e então a realização desta requer tempo e espaço, mas na intuição há uma inteligência que indica precisamente como proceder.
Digamos que você seja um ator. Você lê o roteiro para uma peça dramática e compreende como ela se desenvolve psicológica, intelectual e físicamente. No momento em que você decide desempenhar um papel particular neste drama, a ambientação psicológica global permanece em você.Você desempenha o papel no tempo, de momento a momento, mas a clima desta ambientação está sempre presente. Eu inclusive diria que o clima desta ambientação é sua intuição falando “Eu devo empreender este trabalho”.
A intuição é a aparição de uma perfeita simultaneidade das coisas. Ela é externa ao processo de pensamento ordinário, porque o pensamento ordinário está no tempo. Você nunca pode ter mais de um pensamento ao mesmo tempo, mas pode intuitivamente perceber a totalidade. Depois, você compreende isto na seqüência de tempo e espaço. É como um pintor que, em um certo momento, vê a totalidade da idéia sobre o quadro. Isto não significa que ele veja todos os detalhes, mas ao menos os elementos principais, as proporções. Depois, ele executa a pintura no espaço-tempo.
Pergunta: Há uma visão intuitiva e global da criação, mas algumas vezes parece que o ator fica perdido em seu papel e não vê mais o drama total. Quando a visão é fragmentada, como poderei voltar à totalidade?
Você quer dizer que ele esquece a ambientação? Sim, ele a deixa e, portanto, deve voltar a ela. É por isto que você não deve fixá-la intelectualmente. Permita-a que permaneça um sentimento global.
Mas se você perde este sentimento global, esta totalidade, e tenta compensá-lo com a memória, então você se desencaminhou. Isto acontece algumas vezes aos artistas. Eles têm uma experiência da percepção global e com isto se pôe a trabalhar, compondo ou pintando ou escrevendo. Se eles abandonam o sentimento da totalidade e a compensam com o intelecto, com o passado, com a memória, seu trabalho freqüentemente se torna confuso. Eles podem mesmo deixá-lo de lado.
É da máxima importância não analisar a intuição. Não fixá-la ou encerrá-la em uma estrutura. Não coloque contornos nela. Deixe-a completamente aberta porque ela está viva. Certamente, a realização de uma intuição ocorre no espaço-tempo, e requer que você utilize seu cérebro prático e seu corpo. Mas o apoio de toda sua ação, de todo seu pensamento, de toda a documentação necessária, é esta intuição que subjaz por trás da aparência.
No princípio, a intuição pode se referir a seu comportamento e suas atividades. Mas chega o momento em que em que você tem uma intuição de sua vida total, quando sua totalidade da vida, passado, presente e futuro, vêm à superfície. Como o artista, você não vê os detalhes, mas sente a tensão dinâmica. Esta tensão não é uma reação, mas algo tangível que você sente do mesmo modo que sente as proporções desta sala.
Quando você não se identifica com uma imagem, quando sua observação é inocente, você sente a vida surgir. Mas no instante em que a abandona – no momento em que você se identifica com alguma imagem de você mesmo, como uma mulher, como um profissional, como tendo tanto dinheiro, e assim por diante – neste momento você está novamente vivendo em um círculo vicioso de ter e vir a ser.
Digamos que você passou uma semana na Suíça. Se você esteve presente sem nada etiquetar, sem tirar alguma conclusão, então a impressão geral trará você de volta aos detalhes. Em outras palavras, você vai da totalidade aos detalhes. Mas, se você se identificar com um detalhe, nunca poderá retornar ao total, pois o esforço para esta volta é exatamente uma construção mental, um produto de sua memória.
Quando você ouve música, lê poesia – escute isto – leia-a. Então a alegria estética brota espontaneamente. Você deve evitar completamente o hábito de tentar entendê-la, de apropriá-la. A melhor posição é estar completamente aberto, sem quaisquer conclusões. As situações surgem e as ações acontecem, mas, nesta abertura, as ações estão perfeitamente afinadas com as situações. E você pode ver as coisas como nunca antes.
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De: "A simplicidade de Ser" Conversações com Jean Klein
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