"O costume normal
nas sessões de conversas de Maharaj é esperar pacientemente que ele comece a
discussão. Algumas vezes ele começaria falando sobre um assunto definido; em
outras, sentaria silenciosamente com seus olhos fechados por um tempo e, então,
começaria a murmurar suavemente, talvez pensando alto. Então, novamente, no
próprio começo da conversa, perguntaria aos visitantes se algum deles tinha
alguma pergunta. Algumas vezes, não muito freqüentemente, acontecia que
houvesse um visitante extremamente entusiasmado para perguntar alguma questão
particular referente a um problema específico. Maharaj parecia sentir a ânsia
de tal visitante e olhava diretamente para ele mesmo se ele estivesse na última
fila, e lhe perguntava se tinha alguma questão.
Uma manhã, quando Maharaj perguntou
se havia alguma questão, um visitante levantou sua mão e começou a falar. Ele
disse: Maharaj, tenho um pergunta que me confunde tanto que estou no fim de
meus recursos. Li muito sobre a filosofia do Advaita, e seus princípios básicos
impressionaram-me profundamente, sem dúvida. Diversos mestres me disseram que,
a menos que eu abandone o conceito de minha entidade separada, a liberação não
poderá ser atingida. Aceito de todo o coração que alguém que acredite no
conceito de dualidade – eu e o outro – seja alguém que esteja em ‘escravidão’.
Mas também me disseram que não há ‘escravidão’ para alguém, pois todos sempre
fomos livres! Esta posição contraditória é, para mim, difícil de entender. Não
posso ‘fazer’ nada porque se supõe que não exista nenhuma ‘entidade’. Como
continuar, então, neste mundo? Por favor, esta não é uma pergunta sem valor,
acadêmica. Estou profundamente interessado, e o problema está me deixando
louco. O que nós somos realmente?
Maharaj fixou seu olhar luminoso nos
olhos do visitante, os quais, no momento, estavam cheios de lágrimas. Ele
respirou profundamente, sentou por algum tempo com seus olhos fechados numa
postura que deve ter induzido um sentido de paz no coração do interrogante.
Quando Maharaj abriu seus olhos, ele percebeu que o visitante ainda estava
imóvel, com os olhos fechados. Depois de poucos momentos, quando ele abriu seus
olhos, encontrou Maharaj sorrindo para ele.
Bem, disse Maharaj, o que você estava
pensando durante estes últimos momentos? A resposta foi: Nada. Esta, disse
Maharaj, é a resposta – ‘nada’. Quando você diz ‘nada’, o que quer dizer
exatamente? Você não quer dizer que a concepção, a qual continua na consciência
todo o tempo, cessou temporariamente como se você estivesse no sono profundo?
Você não percebe que a culpa é da consciência, a origem de toda a concepção?
Não percebe que o problema foi criado na consciência e conhecido na
consciência, e que é a própria consciência que está tentando entender sua
própria natureza? Não percebe, portanto, que seria virtualmente impossível
entender conceptualmente o que você é?
Agora, então, prossigamos. Você usou
a palavra ‘realmente’; o que somos ‘realmente’? A pessoa média usaria a palavra
‘real’ para aludir a algo que seja perceptível aos sentidos. O corpo é
perceptível aos sentidos, mas seria ‘realmente’ você? Devemos usar as palavras
corretamente, apesar de todas as suas limitações. Nós consideramos como ‘real’
o que é perceptível pelos sentidos e, ainda assim, toda ‘coisa’ imaginável que
é perceptível pelos sentidos deve passar pela interpretação da mente antes de
ser conhecida. E qualquer coisa que seja assim percebida é apenas uma
aparência; onde, então, está a realidade da forma física que parece tão ‘real’
e tangível?
Não deveríamos ir, então, mais para
trás – ao menos conceptualmente –, até chegar ao estado que prevalecia antes do
aparecimento desta forma física, este aparato psicossomático, anterior mesmo à
concepção desta forma? Se eu pedisse a você para me falar algo sobre seu estado
antes de ser concebido no útero de sua mãe, sua resposta deveria ser
necessariamente “Eu não sei”. Este ‘Eu’ que não conhece aquele estado (de fato
o ‘Eu’ nada conhece até que a consciência apareça) é o que somos realmente – o
Absoluto, o númeno, ilimitado, atemporal, ser imperceptível; enquanto,
relativamente – fenomenalmente – finito, transitório, perceptível pelos
sentidos, é o que parecemos ser como objetos separados.
O estado de não-manifestação, o
númeno, é onde nós (estritamente, a palavra não deveria ser ‘nós’, mas ‘Eu’)
nem mesmo sabemos de nosso estado de ser. Quando nós nos tornamos conscientes
de nosso estado de ser, o estado de unicidade não mais controla porque a
dualidade é a própria essência da consciência. A manifestação
daquilo-que-nós-somos como fenômeno impõe um processo de objetivação que é
necessariamente baseado na divisão em um sujeito que é o que percebe, ou o
conhecedor, e um objeto que é o percebido, ou o conhecido.
Um ponto interessante sobre este
processo de objetivação é que ele acontece necessariamente na consciência, a
qual é a fonte de toda concepção e, portanto, efetivamente, o assim chamado
conhecedor-sujeito e o conhecido-objeto são ambos objetos tornados fenomênicos
na consciência como figuras de sonho. Mas aquele conhecedor-objeto (que conhece
o conhecido-objeto) assume a identidade do sujeito como uma entidade separada –
um ‘eu’ – e dá ao objeto conhecido uma identidade que entende como o ‘outro’.
Assim nasce o conceito de ‘individuo’ através da ilusão, do poder de Maya ou do
nome que a ela for dado.
Uma vez que esta identificação com uma suposta
entidade separada aconteça, o conceito de dualidade fica ampliado e o
condicionamento se torna mais forte. A entidade-sujeito separada, então,
estabelece-se como juiz para analisar e criticar vários objetos, e todo o
esquema de opostos inter-relacionados entra na existência – bom e mau, grande e
pequeno, longe e próximo – dando lugar à condenação e aprovação.
O substrato de toda a criação deste
universo fenomênico é, certamente, o conceito de espaço-tempo. O espaço é
necessário para a objetivação; e o tempo, para medir a duração de sua extensão
no espaço. Sem o espaço, como os objetos poderiam obter formas para tornar-se
visíveis? E, sem o tempo (duração para o aparecimento), como poderiam ser percebidos?
Agora – Maharaj perguntou ao
visitante – sua pergunta foi respondida?
O visitante, que estava escutando com
arrebatada atenção, como se mesmerizado, repentinamente compreendeu que Maharaj
lhe tinha feito uma pergunta. Ele estava tão impressionado pelo que tinha sido
transmitido que, por algum tempo não pôde dizer uma palavra, pois parecia estar
envolvido no puro escutar que elude as palavras. Ele estava em conexão com o
Maharaj.
Maharaj continuou: Se você tiver se
apercebido do que eu disse, você deverá ser capaz de dizer exatamente como e
onde a assim chamada escravidão surgiu, e a quem ela prejudicou. Entenda isto
muito claramente. A manifestação do fenômeno não é senão o processo de
funcionamento da consciência, onde não há nenhuma possibilidade de uma entidade
individual. Todos são objetos, figuras de sonho funcionando em seus respectivos
papéis. Nossas misérias surgem unicamente através da aceitação da
responsabilidade por ‘tomar o encargo’ de nossos papéis no sonho como nós
mesmos, por identificar o que-nós-somos com o sujeito-conhecedor no processo de
objetificação. É esta identificação totalmente desnecessária e ilusória que
causa a ‘escravidão’ e toda a miséria resultante ao indivíduo ilusório.
Uma vez novamente agora:
O-que-nós-não-somos é apenas um conceito, e este conceito está buscando o
que-nós-somos. O condicionamento – o equívoco – pode ser eliminado pelo
entendimento apropriado do que-nós-somos e do que-nós-não-somos. Então estará
claro que a ‘escravidão’ e o ‘indivíduo’ que a sofre por esta razão são meros
conceitos, e que o que-nós-somos, o númeno, pode se manifestar apenas como a
fenomenalidade total. Você encontrará a paz – ou melhor, a paz encontrará a si
mesma – quando houver a apercepção de que o que estamos buscando não pode ser
encontrado pela simples razão de que aquele que está buscando e o que é buscado
não são diferentes!
O visitante continuou sentado com as
mãos juntas, olhos fechados, lágrimas caindo na face. Ele estava em um estado
de silêncio enlevado mais eloqüente do que as palavras."
"Sinais do Absoluto" (Pointers from Nisargadatta)
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