O ponto principal do ensinamento de Nisargadatta Maharaj, é que neste sonho vivo da vida nós não somos os personagens sonhados que pensamos que somos, mas que somos o sonhador (quem está sonhando), e é a nossa identificação equivocada com o personagem sonhado, como uma entidade separada sendo o 'fazedor', o que causa a ilusão do 'aprisionamento'. Nesse mesmo sentido, então, não pode ser o personagem sonhado, uma mera aparência, que pode ser 'despertado' ou 'liberado'. De fato, o despertar consiste em aniquilar totalmente a falsa entidade com a qual nós temos erroneamente nos identificado. Nessa mesma linha, ademais, o 'despertar' ou a 'liberação' não pode ser 'atingido' através de nenhum esforço. Quem irá fazer os esforços – um fenômeno, uma mera aparência? O despertar pode apenas acontecer quando há uma absoluta convicção, através de uma apercepção intuitiva, que nós somos o sujeito que sonha e não os objetos sonhados que desaparecem com o fim do sonho. Para levar esse tema para sua conclusão lógica, a questão final seria: Como essa apercepção intuitiva surge ou acontece? Mas então, esse é exatamente o ponto. Se o processo estivesse dentro dos parâmetros da compreensão intelectual, como poderia ser 'intuitivo'? O intelecto é muito necessário para entender certos fundamentos, mas existe um limite restrito de até onde o intelecto pode ir, e depois, é apenas quando o intelecto abandona todos os esforços e se rende completamente que a intuição assume.
Deveria ficar claro, portanto, que a identificação com uma entidade separada, imaginária, independente, deve desaparecer antes que possa haver o despertar, a iluminação ou a liberação. A identidade equivocada deve ser abandonada antes que a verdadeira identidade possa ser assumida. O que é falso deve ir, antes que o que é verdadeiro possa vir. Isso pode acontecer, diz o Maharaj, de muitas formas. A profunda concentração intelectual do Jnani na fonte da consciência que nós somos chega a um ponto onde a dualidade, a base do intelecto, desaparece repentinamente e a unicidade intuitiva toma a frente. Também, a profunda devoção do Bhakta por seu Deus pode alcançar uma intensidade onde, novamente, a dualidade entre o Bhakta e Deus desaparece de repente e há a realização de que ele, o Bhakta e Ele, o Deus são um, não dois. O mesmo resultado poderia seguir através de um longo e árduo processo de prática Yogi, ou mesmo através de um genuíno serviço social altruísta. Entretanto, o ponto de decolagem final, em todos os casos, é a aniquilação total da identidade individual equivocada. E nesse estágio final o milagre acontece. No momento em que a falsa identidade é liquidada, não sobra nada com o que se identificar, exceto a totalidade! E essa é a experiência do Jnani, do Bhakta bem como a do Yogi.
Um visitante europeu perguntou uma vez para Maharaj: “O mais importante dos mandamentos é: 'Deveis amar o Senhor teu Deus'. Mas eu acho muito frustrante, na verdade, porque esse mandamento fica difícil de ser obedecido pela adição das palavras 'com todo seu coração e toda sua alma e toda sua mente'. Significa claramente que uma mera atitude religiosa bem intencionada não é o suficiente, uma vez que as palavras adicionadas enfatizam que o amor que é mostrado não deve meramente parecer ser amor, mas deve de fato ser amor. A pessoa pode agir como se realmente amasse, mas como assegurar que realmente se ama de verdade? Como assegurar espontaneidade?” A resposta do Maharaj foi simples e linda: 'Sem a auto-realização, nenhuma virtude é genuína; é apenas quando você chega na mais profunda convicção de que a mesma vida flui através de tudo, e que você é essa vida, que você começa a amar tudo natural e espontaneamente.' Tal convicção, é claro, só pode vir através de uma apercepção intuitiva, e a Natureza (Nisarga) terá o seu próprio curso para esse processo intuitivo.
No que diz respeito à identidade do Ser e Deus, é interessante notar a similaridade muito próxima entre o ensinamento dos grandes místicos de várias fés em diferentes épocas.
Nos é dito por São João da Cruz, em seus cânticos que “A corda do amor ata tão próximos Deus e a alma, e os une de tal maneira, que ela os transforma e os torna um através do amor; de modo que, embora em essência eles sejam diferentes, ainda assim, na glória e aparência a alma parece Deus e Deus parece a alma”. (cântico, xxxi) E, em seguida: “Deixe-me ser transformado de tal maneira em Tua beleza, que, sendo iguais em beleza, nós possamos nos ver ambos em Vossa beleza; de maneira que um se segurando ao outro, possamos cada um ver sua beleza refletida no outro, a beleza de ambos sendo a Tua apenas, e a minha absorvida Nela". (cântico xxxvi)
Também o grande Plotino nos fala: “Se um homem vê a ele mesmo tornar-se um com o Um, ele tem em si mesmo a semelhança do Um, e se ele passar por si mesmo como uma imagem por seu arquétipo, ele chegou no fim da sua jornada. Isso pode ser chamado de o vôo do solitário para o Solitário.” (Eneadas, VI 9.911) Os místicos vêem a relação do ser e Deus como algo parecido com a relação entre uma imagem e seu protótipo, mas nunca mais do que uma semelhança, nunca representada no total, mas próxima o bastante para provocar expressão.
Bakti e Jnana na verdade não são diferentes. Nos estágios finais, no caso de ambos, a identidade com a entidade individual desaparece de fato, e o Maharaj, em sua usual abordagem direta e imediata, nos pede para aceitarmos essa base verdadeira de imediato e rejeitar totalmente a falsa. Ele não diz que é fácil, mas ao mesmo tempo nos estimula a não continuar perseguindo uma mera sombra como o ideal. Ele quer que aceitemos nossa verdadeira posição agora, firmemente, com convicção e deixemos a sombra se fundir na coisa essencial! Se você continuar perseguindo a sombra como o ideal, o ideal estará sempre se recuando de você, ele diz.
O Senhor Krishna aponta no Bhagavad Gita, sholoka 10, capítulo 10: "Eu dou Bhudi Yoga, a Yoga da discriminação, para aqueles sempre devotados que Me adoram com amor, por meio do qual eles chegam à Mim.” Conforme a glória de Deus começa a alvorecer na mente do adorador e ele fica cada vez mais envolvido em seu amor por Deus, a Natureza o conduz para o que quer que seja necessário para o progresso seguinte. Maharaj diz que o Guru está sempre lá pronto com sua graça. Tudo o que é requerido é a capacidade, um tipo de receptividade requerida para aceitá-la. Tudo o que é necessário é sinceridade e determinação. A Natureza faz o resto de acordo com a necessidade e as circunstâncias de cada caso.
Seria interessante examinar nesse contexto o que dois dos grandes místicos indianos – Jnaneshvara, fundamentalmente um Jnani, e Tukaram, reconhecido como um dos maiores Bhaktas – tem a dizer sobre esse assunto.
Em seu Jnaneshvari, e especialmente em seu Amritanubhava, vemos a grandeza de Jnaneshvara como um filósofo. Mas é realmente em sua literatura Abhanga que o encontramos despejando seu coração em Bhakti. Geralmente, acredita-se que Jnaneshvara, também conhecido como Jnanadeva, sendo um Jnani, não sofreu as aflições da separação de Deus que o Bhakta sofre. Mas existe um certo número de seus primeiros Abhangas que mostram que, como Tukaram e outros Bhaktas, Jnaneshvara também penou por seu amado Deus. Ele lamenta que a despeito de ser um com Deus, ele não está apto a vê-Lo. “Eu me consumo atrás de Ti”, ele diz, “como um homem com sede anseia por água”. Então, em frustração ele diz: “Que Vossa vontade seja feita, pois todas minhas súplicas foram em vão”.”
Jnaneshvara segue para uma luta poética quando ele descreve a obtenção da bênção consequente da comunhão com Deus: “Conforme aproximei-me de Deus, meu intelecto ficou imóvel e quando O vi me tornei Ele próprio...” (Abhanga 79). E, novamente: “Em todas as minhas experiências fui aplacado pelo silêncio. O que devo fazer se não posso dizer nenhuma palavra? Nivriti mostrou-me Deus em meu coração e eu tenho apreciado a cada dia um novo aspecto Dele.” (Abhanga 76) E mais, “Preenchido com Deus, por dentro e por fora, quando vamos abraçá-Lo, nos tornamos identificados com Ele. Deus não pode ser repelido mesmo se o desejarmos. A individualidade chega a um fim. Quando o desejo persegue Deus, Ele se esconde, num lampejo, entretanto, Deus se mostra quando todos os desejos se aquietam”.
Jnaneshvara simboliza dentro de si mesmo uma unidade não apenas do Jnana e do Bhakti mas também do Yoga em seus vários aspectos. Estando totalmente ciente de que é impossível no nível intelectual entender a natureza de Deus, ou a nossa própria natureza verdadeira, ele diz: “A brisa fresca do sul não pode ser feita cair como água de um pedaço de pano; a fragrância das flores não pode ser amarrada por uma corda … não se pode encher um jarro com o brilho das pérolas, o céu não pode ser fechado”. (Abhanga 93) Para ele o divino aparece como a unidade do homem e da mulher; Shiva e Shakti estão ambos fundidos Nele. A verdadeira bênção, diz Jnaneshvara, é para ser encontrada apenas na Auto-visão, e ele a descreve da seguinte maneira: “Ele vê sua própria forma presente em toda parte. Ele vê o reflexo da forma sem forma. A pessoa que vê se esvai, em toda parte Deus está presente. Não há nem o emergir nem o submergir de Deus. Deus apenas é, e Ele aprecia sua própria felicidade em Sua experiência unitiva. O marido invisível mantém-se desperto em sua cama sozinho”. (Abhanga 91)
Em contraste com Jnaneshvara, a carreira mística de Tukaram fornece um exemplo típico de Bhakti puro. Ele passa por inacreditáveis sofrimentos e angústias até que, finalmente e de repente, ele tem uma visão de Deus, ou uma Auto-visão, que transforma sua vida penosa numa vida de luz, liberdade e harmonia total. Ele descreve sua experiência mais íntima num verso lírico: “O mundo todo tornou-se agora iluminado e a escuridão chegou ao fim… É impossível descrever a bênção da iluminação incessante… Deus e o Ser estão agora deitados na mesma cama… o mundo todo está preenchido com música divina… Tanto meu interior quanto meu exterior estão repletos de bênção divina...” E finalmente, a mais elevada experiência do místico: “Dei a luz a mim mesmo, e saí do meu próprio útero; todos os meus desejos chegaram ao fim e meu objetivo foi alcançado… todas as coisas desapareceram e se fundiram na unicidade… Eu não vejo nada, e ainda vejo tudo. O 'eu' e 'meu' foram removidos de mim, eu falo sem falar. Eu como sem comer… Não preciso nascer e morrer. Eu sou como sou. Não há nem nome nem forma para mim e estou além da ação e da inação… Adorar a Ti torna-se impossível uma vez que És idêntico à todos os meios de adoração. Se eu quero cantar uma música (em Teu louvor) Tu és aquela música. Se eu toco o címbalo Tu és o címbalo.”
Os Abhangas de Tukaram são repletos de misticismo. Ele diz que gostaria que Deus não fosse sem forma: “Seja sem forma para aqueles que querem que sejas assim, mas para mim assuma uma forma e um nome que eu possa amar...” Mais tarde, entretanto, Tukaram estabelece uma identidade entre Deus e o devoto: “Viemos a conhecer agora Tua natureza real. Não há nem santo nem Deus. Não há semente, como pode haver fruto? Tudo é uma ilusão.”
Vimos tanto Bhakti quanto Jnana em ação, e fica claro que eles não são caminhos separados para 'atingir' o Definitivo. Realmente, não há a questão de 'selecionar' um ou o outro. Na experiência mística o 'indivíduo' é totalmente aniquilado, quaisquer que sejam as circunstâncias – ou seja, se o ponto de decolagem foi alcançado através da devoção ou através do conhecimento ou através da combinação dos dois. A conclusão clara é que enquanto a idéia de uma entidade separada com um sentido de ser o fazedor permanece, a experiência mística do universo ser uma ilusão não pode ocorrer. Portanto, devemos aceitar o fato de que nunca houve, nunca pôde haver uma entidade separada nem para estar aprisionada ou para ser liberada.
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