Numa das sessões, o assunto discutido era: ‘em que exatamente se constitui a ‘escravidão’?’. Maharaj explicou que nós somos o númeno – o atemporal, ilimitado, ser imperceptível – e não o que parecemos ser como objetos separados – temporais, finitos e perceptíveis aos sentidos. A ‘escravidão’ surge porque esquecemos nosso ser real, o númeno, e nos identificamos com o fenômeno – o corpo – o qual é somente um aparato psicossomático.
Quando Maharaj solicitou que se perguntasse, um dos visitantes que tinha assistido a diversas sessões, e perguntado pouco, levantou a mão e perguntou: A identificação com o corpo – simplesmente por causa de tal identificação – significaria escravidão? Os Jnanis não podem abandonar seus corpos durante o tempo de duração da vida e devem vivê-la como os outros seres humanos no que diz respeito às suas funções físicas. Além disso, todos os Jnanis não agem de uma maneira uniforme, tendo cada um o seu próprio modo de comportar-se no mundo, seu próprio modo de tratar com os demais. Nesta medida, não haveria uma certa identificação com o corpo individual, inclusive no caso dos Jnanis?
Maharaj sorriu, apreciando a boa fundamentação da pergunta, e disse: O corpo é um instrumento necessário para que a consciência permaneça em manifestação. Como os dois poderiam não se identificar até que o alento vital deixe o corpo (comumente conhecido como morte) e a consciência seja liberada da forma fenomênica? A escravidão não é causada pela simples identificação formal com o corpo, o qual é uma construção psicossomática dos cinco elementos, um instrumento que não tem existência independente. O que causa a ‘escravidão’ é a identificação que resulta no conceito imaginado de uma entidade independente, autônoma, que se considere o agente e, assim, ‘toma sobre si’ as ações e a responsabilidade pelas conseqüências.
Eu repito que não é simplesmente o fato da identificação com o corpo que é responsável pelo conceito de ‘escravidão’. O corpo deve continuar a ser usado como um instrumento. A escravidão pode surgir apenas quando há uma vontade aparente, isto é, quando se imagina a ação como da escolha de alguém como um ‘fazedor’; e isto põe em movimento o processo de causalidade, do Karma e da ‘escravidão’.
É necessário entender como a entidade aparente é sobreposta ao processo geral da manifestação. Uma vez que você veja o falso como falso, não será necessário nada mais para encontrar a verdade, a qual, de modo algum, não pode ser concebida como um objeto. Em que momento surge o problema da identificação? Enquanto a fenomenalidade estiver inteiramente latente na numenalidade (sendo a numenalidade latente no fenômeno), o problema da identificação não deveria surgir de forma alguma. Não há nenhuma necessidade de qualquer identificação específica entre a numenalidade (Avyakta) e a fenomenalidade (Vyakta) como tal. Tal necessidade surgiria apenas quando há a manifestação do Absoluto numenal em objetos fenomênicos separados, um processo de objetivação que requer necessariamente o ‘dualismo’ – uma divisão em dois elementos –, um sujeito (Vyakti) que percebe e conhece, e um objeto que é percebido e conhecido. O ponto importante é que tanto o sujeito-conhecedor quanto o objeto-conhecido são objetos interdependentes e podem existir apenas na consciência na qual o processo de manifestação ocorre, e esta consciência, de fato, é o que nós somos!
Entenda este ponto básico: Podemos existir somente como objetos uns dos outros; e isto, também, só na consciência do sujeito-conhecedor que nos conhece, cada objeto tomando a posição de sujeito-conhecedor (Vyakti) em relação aos outros, os quais se convertem nos objetos. E aqui surge a ‘entidade’ (Vyakti). O sujeito-conhecedor, considerando sua função subjetiva, assume ‘a si mesmo’ como uma entidade, um ‘ser independente, autônomo, com vontade e escolha. Esta entidade-imagem ilusória, então, segue o princípio do ‘dualismo’ (que é a própria base da manifestação) para comparar, discriminar, fazer um julgamento e escolher entre seus objetos desde o ponto de vista dos opostos inter-relacionados tais como certo e errado, bom e mau, aceitável e inaceitável, etc.
É esta ilusória ‘entificação’, e não simplesmente a identificação com o corpo, que é a raiz da ‘escravidão’. Repetindo: O que nós somos – o Absoluto numenal (Avyakta) manifestando-se como a totalidade dos fenômenos (Vyakta) – é destituído de qualquer existência objetiva individual. Portanto, o que-nós-somos não pode sofrer nenhum ‘nascimento’ ou ‘morte’ nem escravidão nem liberação. A escravidão e o sofrimento resultante são puramente conceituais, baseados na identificação com o sujeito-conhecedor-entidade (Vyakti) totalmente imaginário.
Um exemplo do que Maharaj tinha dito é dado pela maneira na qual ele apreciava um bom dialogo sobre um assunto que se tenha desenvolvido de forma interessante. Quando, durante as discussões sobre assuntos abstrusos, alguém da audiência mostrava uma percepção penetrante no que Maharaj havia dito, ele se sentia feliz como uma criança que tivesse recebido um brinquedo desejado. Quão bem se desenvolveu o assunto nesta manhã, poderia dizer. Algumas vezes, totalmente esquecido de qualquer implicação de uma mente dividida normal, ele poderia dizer que tal alto nível de discussão sobre o Advaita não estaria disponível em qualquer outro lugar! Mas o que pode parecer em tais ocasiões um auto-elogio é, na realidade, a pura alegria da modéstia. Ele, então, era o Vyakta, e não o Vyakti.
Diz-se de Ramana Maharshi que, quando as pessoas cantavam ‘Hinos em Louvor de Ramana’, juntava-se a eles no canto e se punha a bater palmas como todos os demais. Ele havia se desidentificado de qualquer entidade e estava, portanto, totalmente esquecido de quaisquer implicações de suas ações. Os hinos se referiam a ‘Ramana’, não a um indivíduo. O Jnani, realmente, não tem entidade individual a embaraçá-lo, e seu aparato psicossomático, o corpo, realiza suas funções de modo normal sem estar consciente delas.
Um comentário:
Muito Obrigado!!
Grande abraço,
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