Todo o corpo ouve. Está completamente fora da relação sujeito-objeto. O escutar acontece, mas nada é ouvido e ninguém escuta. E como a escuta incondicionada é nossa real natureza, conhecemos a nós mesmo na escuta.
Mas raramente escutamos de verdade. Nós vivemos mais ou menos continuamente no processo de devenir. Projetamos uma imagem de ser alguém e nos identificamos com ela. E, enquanto nos tomamos por uma entidade independente, há uma fome contínua, um sentimento de incompletude. O ego está constantemente buscando satisfação e segurança, daí sua perpétua necessidade de ser, de realizar, de alcançar. Desta forma, nós nunca contatamos a vida realmente, pois isto requer abertura de momento a momento. Nesta abertura, a agitação estimulada pela tentativa de saciar uma ausência em você mesmo chega ao fim e, na quietude que fica, você é direcionado de volta para sua integridade. Sem uma auto-imagem você é realmente um com a vida e com o movimento da inteligência. Apenas então nós podemos falar de ação espontânea. Todos conhecemos momentos quando a pura inteligência, livre da interferência psicológica, surge, mas logo que retornamos a uma imagem de ser alguém, questionamos esta intuição perguntando se ela é certa ou errada, boa ou má para nós, e assim sucessivamente. O quer que façamos intencionalmente pertence ao “ego-eu” e, embora apareça como ação, é realmente reação. Apenas o que surge espontaneamente do silêncio é ação e não deixa nenhum resíduo. Você nem sequer pode recordá-la. A ação intencional do “ego-eu” sempre deixa um resíduo que emergirá talvez no estado de sonho ou mesmo como uma fixação que podemos mais tarda chamar enfermidade.
Na espontaneidade a ação ocorre, mas ninguém atua. Não há nenhuma estratégia, nenhuma preparação. Há apenas Consciência livre da agitação e da memória e, nesta quietude, todas as ações são espontâneas, pois cada situação pertence a sua abertura, e ela mesma lhe diz exatamente como proceder. A ação real não surge do raciocínio, mas da observação receptiva. Por exemplo, quando você vê uma criança pequena atravessando a rua, você não pára e pensa, “Devo gritar pedindo ajuda ou devo ir e pegá-la, ou devo deixar que vá só?” Você age. Mesmo que você tenha realizado vinte vezes esta ação, é nova a cada vez. Pertence absolutamente ao momento.
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Uma experiência é sempre referida a alguém, a um eu. É compreendida por referência ao passado, à memória, ao que conhecemos bem. Porém ela tem um sujeito, alguém que experimenta, e um objeto, algo experimentado. Mas o que somos fundamentalmente nunca pode ser experimentado, nunca pode participar da relação sujeito-objeto; por isto devemos abandonar todo o desejo de experiência.
O que então significa familiarizar-se mais consigo mesmo? Significa conhecer melhor o que você não é, sobre seu corpo, seus sentidos, suas emoções, sua mente. Este é um movimento diametralmente oposto à tentativa de agarrar-se ao conhecimento.
Ele deve vir a si mesmo. Portanto você deve escutar seu corpo, seus sentidos, sua mente, e é uma escuta que exige o abandono de tudo que acredita saber, todo condicionamento, todo esquema. Quando permanecemos nesta escuta, as percepções afloram do que a psicologia chamaria de subconsciente e superconsciente. Mas não ponha ênfase nas percepções porque acentuar o percebido o ata à relação sujeito-objeto. Primeiro, o interesse está no que percebe e, mais tarde, você perceberá que o que se enfatiza é a própria escuta, até que finalmente se dá conta que você mesmo está nesta escuta. A escuta é a tela sobre a qual tudo aparece. É quietude. Seu corpo, seus sentidos, sua mente e todos os estados vêm e vão, mas você é essa presença atemporal.
A idéia de que haja alguma coisa a alcançar está profundamente enraizada, por isso continuamos vivendo no processo de vir a ser, projetando energia para adquirir ou conservar algo. Mas a escuta inocente aprofunda a convicção de que não há realmente nada a ganhar ou a perder e os condicionamentos se desvanecem na mente, a agitação desaparece e apenas a quietude permanece. Você é então como o pescador que não controla o peixe nem a água. Limite-se a observar e você terminará por sentir que tudo está contido nesse olhar, nesse silêncio, que nada existe separado disso. Nesse momento, você está no umbral de seu ser real e nenhum desejo pode vir a interferir. Você é tomado pelo próprio Ser.
(De: "A Simplicidade de Ser" : dialogos com Jean Klein)
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